América Latina comemora cem anos de universidade pública

\"\"Entre os dias 11 e 15 de junho passado foram comemorados os 100 anos de universidade na América Latina durante a Conferencia regional de Ensino Superior da Unesco, a parte da ONU que cuida da Educação, Ciência e Cultura. Entre os 10 mil participantes havia autoridades governamentais, reitores, professores, estudantes de graduação e pós-graduação, além de técnicos administrativosde 33 países do continente, que discutiram a atual situação da educação superior na América Latina e Caribe em face à internacionalização e mercantilização que vive o ensino na região.

A conferência se deu em Córdoba, na Argentina, local em foi fundada a 1ª universidade da região e contou com uma delegação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Foram apresentados diversos temas tais como o sistema educativo da América Latina e Caribe, a diversidade cultural e a interculturalidade da região, a reforma universitária de Córdoba, o papel estratégico do ensino superior para o desenvolvimento sustentável da região, bem como a internacionalização e integração regional e o papel das universidades frente aos novos desafios sociais e de pesquisa científica e tecnológica como motor do desenvolvimento humano.Os resultados do encontro promoveram recomendações de políticas públicas e gestão universitária para a próxima década.

A América Latina passou por mudanças políticas recentes e, a exemplo do que aconteceu nos anos 1990, vem se alinhando às políticas de abertura comercial, flexibilização financeira e privatização das empresas e serviços públicos impostas pelos organismos internacionais. Nesse contexto, a universidade pública tem sido alvo de ataques que visam a desconstruí-la e desacreditá-la. A privatização do ensino superior voltou a representar uma ameaça aos estudantes universitários em países onde essas políticas pareciam superadas.

A internacionalização da educação pela via do mercado permitiu abriu as portas da América Latina à empresas transnacionais de ensino oriundas de países desenvolvidos, que atuam sem qualquer regulamentação que normatize o seu funcionamento. Sob o comando das transnacionais, o direito à educação vai sendo reconvertido em privilégio eem mercadoria, o que é prejudicial para nossos povos:a desnacionalização do sistema educativo resultará na exclusão dos setores sociais menos favorecidos que não podem pagar pelo ensino universitário.

Os critérios de validação dos cursos superiores, o reconhecimento dos diplomas, o financiamento das pesquisas científicas e tecnológicas passam cada vez mais pelo crivo dessas empresas transnacionais de ensino. Considerando o papel estratégico da universidade para a formulação de conhecimento que dê sustentação a projetos nacionais e regionais de desenvolvimento, o controle exercido por essas empresas representa uma séria ameaça à soberania da América Latina e Caribe. Essa tendência vai na contramão do acesso democrático à universidade, contrariando as políticas que vinham sendo implementadas com êxito por universidades do México, da Venezuela e do Brasil, por exemplo.

Ficou evidente ao longo do encontro que o ingresso diferenciado de estudantes através de quotas étnicas, raciais e sociais ampliou de forma significativa o acesso à universidade nesses países. Essas políticas de inclusão não podem ser abandonadas e a internacionalização do ensino representa uma ameaça a esse processo. Para ser contemporânea dos novos tempos, a universidade pública deve abrigar os diferentes segmentos da sociedade civil, considerando especialmente, a riqueza cultural dos povos originários e afrodescendentes, as carências das populações menos favorecidas, a acessibilidade dos portadores de necessidades especiais, as orientações sexuais de grupos LGBTs, entre outros. Isso não será alcançado se a mercantilização do ensino prosseguir avançando sobre as universidades públicas no ritmo que vem acontecendo.

Nesse contexto de mudanças regionais e internacionais, vale ressaltar o lugar especial das universidades interculturais indígenas, que mereceram destaque nesta III Conferencia. Pela primeira vez o encontro contou com a presença de reitores indígenas, representados pela Rede de Universidades Indígenas Interculturais e Comunitárias de AbiaYala (RUIICAY). A educação pública e de qualidadesó alcançará com plenitude os seus propósitos se levar em consideração a pluralidade cultural latino-americana. Em sociedades marcadas por desigualdades socioeconômicas e, por consequência, étnico-raciais, a educação intercultural deve resgatar e valorizar outras cosmovisões e percepções de mundo. O futuro da diversidade cultural depende da qualidade da relação intercultural do presente, como elemento capaz de valorizar os saberes das populações historicamente excluídas.

Situação no Brasil

O Brasil constitui um caso exitoso de expansão de universidades públicas na América Latina e Caribe. O exemplo das políticas de inclusão social e democratização do acesso às faculdades brasileiras foi lembrado em diferentes painéis do encontro. Segundo dados do Ministério da Educação, o número de estudantes matriculados nos cursos de graduação presencial, graduação à distância e pós-graduação cresceu de 2003 a 2015 de forma contínua e sustentada, como se pode observar no gráfico abaixo:

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Nos governos dos presidentes Lula e Dilma, o número de universidades federais passou de 45, em 2003, para 63, em 2016. Foram abertos 331 campus de universidades federais, em 275 municípios, e criados Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) em mais de quinhentos municípios. No mesmo período, foram realizadas mais de 1,2 milhão de matrículas nas universidades federais.

Igualmente exitosas foram as políticas de quotas étnico-raciais e ações afirmativas implementadas por universidades públicas a partir de 2003. A IV Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das Universidades Federais (Andifes Fonaprace), de 2014, realizada em um universo de 1 milhão de estudantes das 63 universidades federais, chegou às seguintes conclusões sobre o perfil desses estudantes.

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Quadro 1

As atuais políticas do Ministério da Educação do governo Temer colocam em risco esse avanço consistente da expansão da educação superior no país, que poderá voltar a ser privilégio de poucos. Sem recursos para a assistência estudantil e outros programas de permanência, os índices de evasão nos últimos dois anos voltaram a crescer, o que é um sinal do desmonte que o atual governo vem provocando nas universidades brasileiras.

Um pouco de História

Uma das mesas mais concorridas da Conferência discutiu o significado da Reforma Universitária de Córdoba, movimento de democratização das instituições de ensino superior embandeirada por estudantes argentinos no início do século passado. Frequentada por filhos de imigrantes europeus, em sua maioria descendente de trabalhadores braçais e iletrados, aqueles jovens estudantes viam na educação superior um meio de ascensão social capaz de libertá-los de uma vida condenada à exploração do trabalho, como era a de seus pais.

A Universidade Nacional de Córdoba era uma instituição oligárquica e semifeudal, controlada pelo pensamento religioso, na qual os filhos dos imigrantes se sentiam alvo dos mesmos preconceitos predominantes na sociedade argentina. Divorciada da realidade social do país, a Universidade de Córdoba, com sua liturgia tradicional, métodos pedagógicos ultrapassados e saberes escolásticos e medievais, reproduzia um modelo de ensino distante da realidade cultural, política e social daqueles jovens. Por isso eles se levantaram em junho de 1918, exigindo a participação paritária nos órgãos de gestão e a democratização da universidade, o que implicava a remodelação de todo o ensino superior.

O movimento reformista se espalhou por outros países da América Latina e Caribe e alcançou seus objetivos. Os estudantes cordobezes não se limitaram às reivindicações corporativas dos diferentes segmentos da comunidade acadêmica e, com suas justas demandas, conquistaram amplas camadas sociais, indo muito além dos muros universitários: posicionaram-se ao lado de movimentos emancipatórios, apoiaram a revolução russa e lutaram pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. Suas posições políticas foram divulgadas no Manifesto de Córdoba de 1918, no qual expressaram a sua visão de uma universidade autêntica e denunciaram as injustiças reinantes. Com seu grito emancipatório, latino-americanista e integracionista, anteciparam em um século o pensamento pós-colonial atualmente em voga na América Latina e Caribe.

As conclusões do encontro foram divulgadas ao final do evento e encontram-se disponíveis para consulta no site da Conferência. Elas reafirmaram o entendimento de que a educação é um bem público, um direito do cidadão e um dever do Estado. Às instituições de ensino superior e à comunidade acadêmica da América Latina e Caribe, que em última instância são sujeitos responsáveis pelo fortalecimento das universidades públicas, competem agora conhecer e divulgar as recomendações da III CRES.

Editado por Ciça Bueno,a partir de artigo da Newsletter da Fundação Perseu Abramo, de autoria de Danielle Araújo, antropóloga, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) e Renato Martins, sociólogo, docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila)